Tudo o que a Editora Abril nos ensinou
- Ricardo Daumas
- 7 de jun. de 2021
- 10 min de leitura

“O mundo acelera numa direção pouco conhecida onde a única certeza é a de que não será suficiente ser o que somos hoje para vivermos bem. Isso se aplica à empresas e pessoas, que não precisam saber de tudo, mas precisam assimilar a ideia de que a mudança em nome da evolução é um fato, e talvez a única verdade indiscutível”
Ricardo Daumas, sócio-diretor da Solu9.com
Eu sempre fui orientado a me dedicar às coisas que eu gosto, e que entendo importantes, que fazem sentido. Isso se deu na vida pessoal, nas decisões acadêmicas e nas profissionais, combinar o pensamento pragmático com o prazer em viver. Quase sempre consegui e, ainda que algumas passagens possam parecer menos bem sucedidas, considero uma trajetória acertada. Gosto de onde cheguei, do que faço e do que sou, e continuo perseguindo as necessidades da vida. Não posso me queixar.
Movido por esse pensamento tive um dia a chance de trabalhar na Editora Abril, começando em 15 de junho de 1996 (sou ruim de datas, essa eu marquei...). Era uma posição de Gerente de Circulação, que não era assim anunciada pois pouca gente fora do universo editorial sabe o que é isso, mas é o responsável pelas vendas e marketing das publicações, algo similar a um Gerente de Produtos. Era a oportunidade perfeita. Dar sequência à minha carreira como gestor de marketing numa empresa líder, e me aproximar do universo editorial, eu me sentia premiado e fiz bom uso disso. Convivi com gente que admiro e que me inspirou para sempre: jornalistas, jornaleiros, artistas gráficos, marqueteiros, publicitários, administradores, vendedores, carregadores de pianos. Pessoas apaixonadas pelo que faziam, perfeccionistas e defensores das cláusulas pétreas do jornalismo. Informação isenta, precisa, útil e sedutora, sempre, a despeito de qualquer opinião em contrário. Participei e por vezes estive à frente de algumas das tarefas mais entusiasmantes e enriquecedoras da minha vida, motivo de orgulho verdadeiro e assumido, então, antes de qualquer outra coisa, esse é um relato de reconhecimento, e gratidão.
Uma morte mais que anunciada.
Hoje, 07 de junho, é o dia Nacional da Liberdade de Imprensa. Você não deve saber disso, e eu também não sabia. Na virada do mês deu-se o leilão do icônico prédio da Editora Abril na Marginal Tietê, em SP, onde por décadas funcionou seu parque gráfico, e que em diferentes momentos acolheu também editorias diversas e mesmo a sede da Editora. O arrematante, agora sabemos, foi o grupo Marabraz, e também já sabemos que as máquinas estão sendo desmontadas e transformadas em sucata. Gráfica e editora, não serão mais. Não era o meu habitat natural, mas tenho impregnado nas narinas o cheiro misturado de tinta e graxa das rotativas barulhentas que não poucas vezes vi trabalhar, principalmente quando um ou outro editor mais entusiasmado me convocava a verificar in loco a primeira prova de uma capa de guia, ou um encarte especial. Era cansativo, longe de casa e em geral de madrugada, mas era deslumbrante, e a sensação é de que a imprensa vai ficar menos livre sem elas.
Para completar o quadro de coincidências o Facebook me lembra que oito anos atrás nos deixou Roberto Civita, herdeiro do Fundador Victor Civita e que na companhia dos filhos Gianca e Titi dirigiu a empresa nas décadas anteriores. Há quem diga que não, mas quando ele se foi a empresa já estava em rota de encontro ao desmanche. Foi um momento triste e difícil, registrado com manifestações de toda uma comunidade de ex-abrilianos e outros tantos ainda na ativa, num caso raro de amor e admiração unânime, um respeito pela obra que superava qualquer diferença do dia a dia. Estive pessoalmente com o “Dr. Roberto” em reuniões de trabalho uma dúzia de vezes se tanto, em tarefas bem específicas como no lançamento da Edição Nacional da revista National Geographic, provavelmente uma das tarefas mais desafiadoras e prazerosas que já me concederam. Ele era certeiro. Sabia o que fazia a diferença no seu negócio, compartilhava e deixava as pessoas trabalharem. Nem de longe foi um homem de pouca visão ou refratário às mudanças, pelo contrário, ousou muitas vezes como na iniciativa da malfadada TV Abril, mas não conseguiu fazer a transição do mundo impresso para o digital, e aí é que temos algo a aprender.
A força dos credos, e das “igrejas”.
Muita gente já tentou contar a história da Abril, e são muitos os pontos de vista para explicar tanto o sucesso quanto a derrocada. Empresas editoriais, produtoras e difusoras de conteúdo no mundo inteiro foram determinantemente abalroadas pelos recursos cada vez mais dinâmicos das novas mídias digitais (já nem tão novas...), e a maioria sucumbiu. Não me habilito a ser o juiz dessa história, mas seu tivesse que resumir em um pensamento as razões do sucesso eu diria que estão na diferença entre perceber a mudança, assimilar a mudança e se empenhar na mudança como prioridade. Pode parecer que é fácil, mas não é.
Em abril de 1996 o Dr. Roberto foi entrevistado no Programa Roda Viva (TV cultura, SP), num episódio importante para qualquer um que queira entender o que era o mundo antes da internet e das redes sociais (se tiver curiosidade, confira aqui https://youtu.be/4mDjiOilIA8 ). Era clara a visão dele do que estava por vir e, questionado, chega a responder que seu negócio não era papel e tampouco a gráfica, e sim informação, conteúdo, não importava o meio. Ele estava sendo sincero, sua percepção era precisa e reconhecia a necessidade da mudança, mas o fato é que não conseguiu efetivar essa transformação na sua própria empresa, infelizmente.
Empresas são organismos vivos, e tem vontade própria, e estruturas, práticas, culturas, e pessoas que cresceram nela e dela vivem. Criam e celebram valores que foram importantes para sua edificação, mas que em algum momento poderão ser evocados por motivos vários, o que inclui evitar a mudança em defesa própria, das pessoas e em detrimento da empresa. É frequente, acreditem. Valores essenciais dificilmente mudam, mas a leitura que se faz deles, sim, e daí se constroem discursos, por todos e para todos os fins. Mudar é desconfortável, e não raro faz com que as pessoas sintam-se ameaçadas, com medo que suas habilidades e conhecimentos percam o valor, então se defendem, resistem em nome da própria sobrevivência. É natural e talvez até justo, ou justificável, mas pode ser fatal. Empresas falidas não produzem, não mantém empregos, nem pessoas. As lideranças precisam ficar atentas a esse momento de resistência. Os valores e práticas que trouxeram a empresa com sucesso até aqui podem não ser suficientes para tocar o desafio adiante, e enfrentar as novas necessidades. Tem que se fazer uma leitura isenta do momento, aprender e evoluir.
No universo editorial essa mudança era muito evidente pois se tratava de mudar um formato, um meio físico, renunciar a máquinas, processos, meios de armazenagem e distribuição, e modelos de receita. É tudo diferente, e motivado pelo novo jeito de consumir informação, entretenimento, cultura e serviços. O que era uma matéria de 12 páginas e vendida numa banca pode ser agora dito num vídeo de 3 minutos, e transmitido por um link no WhatsApp. Não adianta achar que um jeito é melhor que o outro, mais digno, fluido, não importa. O público absorveu esse novo jeito de consumir o que você produzia, e a mudança vai se dar, o novo meio vai se impor, e vai ter que se aprender a fazer do novo jeito, ou sucumbir. É difícil. Difícil de aceitar, de entender e de mudar, pois não é suficiente que você acredite na mudança, vai ter também que fazer todos na empresa, que cresceram e se formaram sob aquelas práticas renunciarem a seus credos, seus meios de vida, suas práticas, suas verdades, e trabalharem pela mudança, com verdadeira dedicação. É uma igreja, sem tirar nem pôr, e sem milagres. Quem vai ter que operar o milagre é você.
A roupa que já não te veste.
Em 1999 eu vivia uma pilha de aflições. Estava mais perto dos 40 que dos 30. Ainda não era diretor, ainda não era pai, o milênio estava acabando e eu não participava daquele fuzuê da internet que virava o mundo de cabeça pra baixo, e eu tinha certeza de que isso ia sepultar minha carreira, talvez a minha vida. Um pouco dramático, mas era isso que se passava. Eu tinha uma equipe bem montada, pares e colegas sensacionais e um grupo de publicações de viagem e turismo (que eu adorava!) sob minha responsabilidade e crescendo. Estava tudo bem, mas eu não estava feliz. A Abril deveria estar caminhando a passos largos para o mundo digital, mas não estava. Muitos saíram, migraram para outros grupos ou para uma das centenas de “startups” que pipocavam toda semana, e desapareciam com a mesma velocidade. Aquilo me afligia imensamente, queria ser digital também, mas não embarcar numa aventura internética sem consistência, e oportunidades para isso não faltaram. A história é longa e merece ser mais bem contada, mas o fato é que num dado momento a Abril resolveu montar uma Unidade de Negócios Digitais, a Abril.com, e eu fui lá me oferecer pra participar disso. Entreguei a tarefa de lançar a NatGeo, e fui me juntar a uma dúzia de outros pioneiros sob a liderança do intrépido Mauro Calliari. Era maio de 2000, o bug do milênio não nos destruiu, eu virei diretor e, para meu alívio, digital. Foi mais um tempo sensacional, mais um privilégio. Participar daquele momento e naquele lugar foi um presente do universo. Nós estávamos escrevendo um pedaço da história da internet ao mesmo tempo que tentávamos entender e explicar para os demais o que de fato era. Em 2 anos éramos uma unidade de negócios que produzia, faturava e se pagava, e explorava a possibilidade de desenvolvimento de um caminho nesse novo mundo mas, infelizmente, não durou mais que isso.
Ninguém tinha coragem de dizer em voz alta, mas nós éramos bichos estranhos naquele mundo de textos e fotos em papel, “novidadeiros” efêmeros, fadados a sucumbir à realidade, uma moda “que ia até ficar”, mas menos importante. Falávamos em novos formatos, em novas receitas, num jeito novo de vender, de absorver informação, de compartilhar com transversalidade temas até então tratados de maneira vertical, profunda, especializada. Falávamos em parcerias, em oferta de serviços, em links, hiperlinks, banners, backbones, portais, multicanalidade... enfim, uns delirantes. Ao fim dos tais 2 anos, alguém com poder entendeu que já tínhamos experimentado e desenvolvido o suficiente para deixar de existir. A unidade foi desfeita, e as redações originais assumiram seus próprios sites e portais similares. Simples e rápido assim. Fui notificado assim que voltei de uma semana rápida de férias, e apesar de ciente do nosso status de pouca relevância para muitos, fui pego de surpresa, não imaginava que pudesse ter esse desfecho. Havia lugar pra mim na empresa, me apressaram a informar, mas eu sequer marquei as entrevistas necessárias para essa continuidade. Não fazia sentido permanecer ali se a evolução no universo digital não era percebida como importante, eu nem conseguia entender. Aquela roupa que eu gostava tanto já não me servia, eu não estava mais ali.
O exercício da mudança.
A ideia desse texto não é contar a minha história, nem fazer críticas às decisões tomadas pela empresa naquele momento, mas são passagens importantes para ilustrar a diferença entre a percepção do novo como uma necessidade, e não como uma frivolidade, uma coisa divertida mas desnecessária. Não tenham dúvida de que essa é uma visão muito usual.
A atitude aparentemente corajosa de deixar a Abril foi viabilizada pela temperatura do mercado. Migrei de imediato para a operação local da América Online, uma megaempresa global de presença meteórica no país, chegou, passou e se foi num átimo, mas era a Time Warner, o maior grupo de comunicação do mundo, valia a minha aposta, outra história pra ser melhor contada. Quando terminou vieram outras propostas em empresas muito parecidas, mas veio também a visão de que meu espaço era outro. Eu era um bicho híbrido, que entendia de varejo, marketing, publishing, gestão e que tinha uma experiência única no universo digital, que naquela época a gente chamava simplesmente de “internet”. As empresas não nascidas nesse novo mundo precisavam aprender a conciliar as novas necessidades com suas antigas estruturas, e eu podia ajudar nisso. Conhecia as duas tribos, falava as duas línguas, muito diferentes, e conseguia conversar com ambas, e com consumidores dessas novas várias possibilidades também, um mundo que seria mais integrado, e diverso.
Abri mão de outras ofertas de empresas 100% digitais e fui para a Livraria Saraiva em 2005, assumir o marketing e a operação de e-commerce. Foi outro período glorioso e de ótimas histórias para contar, de muito sucesso. Ajudamos a empresa a triplicar de tamanho em 4 anos, com ótimos resultados e um e-commerce de respeito associado a lojas em todo o país. Ao final dessa experiência me dediquei a aplicar as práticas de integração de comunicação e consumo em diferentes canais em outras empresas (o que muitos conhecem como OMNI Channel), como fornecedor de serviços e consultor, coisa que faço até hoje, adicionando uma visão de negócios para um mundo + sustentável. Nunca deixei de acompanhar as movimentações na Abril e na Saraiva, com um misto de tristeza e apreensão. Nunca deixei de acreditar numa virada, mantive relações próximas e conversas frequentes, mas não aconteceu. Por razões diferentes, ambas perderam seus espaços. Sobrevivem ainda, mas não se transformaram o suficiente. Não assimilaram o fluxo irreversível da vida, que se dá nas empresas também de maneira darwiniana: quem consegue se adaptar e se transformar evolui e se estabelece, e eventualmente domina. Não é um processo simples nem livre de traumas. Não poupa credos nem histórias, e não consegue salvar todos, mas é assim. Resistir à mudança é lutar contra a vida, e não participar da vida é um caminho arriscado, por vezes sem volta.
Empresas, principalmente as grandes, vivem e dependem de rotinas que precisam ser bem executadas (..a isso se atribui o nome de burocracia. Não é um palavrão, é um sistema, necessário..), mas precisam exercitar o novo, a mudança, com todos os seus riscos e desconfortos, em todas as suas posições. Empresas e pessoas precisam ser curiosas, estimular a pesquisa e a investigação, e em alguma medida criar espaço para o erro, principalmente quando ele se dá em nome do desenvolvimento. Acertar na medida é o desafio, equilibrar a eficiência e a exploração, e premiar a ambos, com igual entusiasmo. A nova especialidade do profissional de sucesso é saber conviver com a mudança, em si e para o grupo.
Compartilharam esses dias uma foto de uma das máquinas da gráfica sendo cortada, serrada ao meio, e com abuso da metáfora é de cortar o coração. Não tenho a pretensão de entender que poderia ter evitado isso, mesmo que fosse possível salvar a gráfica, mas a Abril sim, e muito vai ser perder com a sua gradual ausência. Evoluir não precisa ser abandonar o que já existe, mas aprender a viver com o novo, se desafiar diariamente pela participação num novo espaço. Guardar e aplicar conhecimento, e abraçar com gosto as novas demandas. Talvez essa seja a lição a ser aprendida num momento de tantos fatos novos e num mundo tenso e hiperativo, mas que não pode deixar um desfecho desses passar despercebido. Minha gratidão a essa árvore gigante da Abril por ter um dia me acolhido, com saudade, carinho e meus votos de boa sorte.
Um abraço, e boa semana para todos!
Ricardo Daumas
daumas@solu9.com.br



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