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Quem tem medo do ChatGPT?

  • Foto do escritor: Ricardo Daumas
    Ricardo Daumas
  • 27 de abr. de 2023
  • 9 min de leitura

Atualizado: 28 de abr. de 2023

“A disseminação acelerada e popular dos recursos de Inteligência Artificial nos instiga com a ideia de que um dia seremos substituídos pelas máquinas, mas o que não percebemos é que isso já aconteceu, e vai continuar a acontecer, mais para uns, menos para outros. Viver num mundo em eterna evolução é de dar medo mesmo...”


Ricardo Daumas, sócio-diretor da Solu9.com e Publisher da plataforma Há Limites.



O ano não sei ao certo, provavelmente 1989, no máximo 1990. Eu trabalhava como redator numa pequena agência de publicidade no Bairro de Perdizes, em São Paulo. Eram dois sócios, e um deles nos parou num fim de tarde para vermos a apresentação de um “novo” serviço. Basicamente era um terminal de computador, bem precário, onde se podia digitar um texto e diagramá-lo com algumas opções de formatações, apenas isso. Esse terminal era integrado (via sinal telefônico...) a uma gráfica, que imprimia aquele bloco ou linha de texto, ou letras soltas, e nos entregava com a promessa de ser “no mesmo dia”. Com isso, os finalizadores de artes para propagandas em revistas, folhetos, jornais etc pulavam etapas, não tinham que desenhar nem decalcar letrinha por letrinha nas artes finais junto com as fotos e ilustrações, já recebiam tudo pronto e bem finalizado, para ser fotografado, transformado em “fotolito” ou algo do gênero, e enviado para a gráfica. Isso faz 30 anos, um pouco mais talvez, e num espaço de meses acabou com o emprego de milhares de profissionais que faziam esse trabalho manual que era chamado de “past up”, fundamental nas agências, estúdios, gráficas, editoras etc. Deve ser difícil para você que já nasceu num mundo digitalizado e informatizado entender, mas era exatamente esse o processo, e não faz muito tempo.

Isso para ilustrar que essa aflição com o novo já nos acompanha desde sempre, mas está mais intensa. Deu-se também quando inventaram a máquina a vapor, o carro, a máquina fotográfica, o controle remoto da sua TV, e a própria TV. Traquitanas com promessas de transcender os sentidos da humanidade. Tente se reportar no tempo, e imaginar como alguns reagiram ao aparecimento da Televisão: “Meu Zeus, não preciso mais ir ao Teatro, nem ao jogo de futebol, nem nada...está tudo dentro dessa caixa e dentro da minha casa, onde nós vamos parar! Não vamos mais ter que sair pra ver coisa alguma, vamos virar plantas dentro dessas paredes !”. E olha, tem gente que virou mesmo.....


Algumas dessas “invenções” de fato fizeram indústrias inteiras desaparecer, ou as transformaram, tudo depende de como os diretamente impactados se comportaram com a mudança. Resistiram, ignoraram, desdenharam, ou aderiram a ela, e tentaram participar. Para quem (como eu...) chegou a conhecer a máquina de escrever, usou os serviços dos correios para se comunicar, revelou centenas de rolos de filmes em laboratórios fotográficos cada vez mais modernos e comprou pilhas de discos de vinil a sensação deve ser clara: esses serviços, essas indústrias simplesmente deixaram de existir ou mudou o jeito de nos relacionarmos com elas. A mudança limou postos de trabalho, criou algumas novas posições mas o mundo seguiu, com novas soluções para as mesmas necessidades de sempre, e algumas novas práticas. Melhorou, piorou... boa discussão, mas seguiu, e nós também.


PERDAS & GANHOS


Não serei simplista, nem reduzirei as possibilidades do ChatGPT e outros serviços similares (pode pesquisar, ChatSonic, Jasper, e mesmo as opções da Microsoft e Google, respectivamente o BING e o Bard), todos baseados numa evolução brutal do uso dos recursos de Inteligência Artificial, ou AI, como você vai se acostumar a ver cada vez mais adicionado como recursos em serviços e equipamentos oferecidos a você. O assunto ganhou peso pela espantosa velocidade de adoção e uso dos aplicativos. Em questão de semanas adquiriu um número de usuários na casa de milhões, coisa que os “big players” (facebook, Instagram, Amazon, TikTok etc...) levaram meses ou anos para conseguir. Bem verdade que os tais Big Players surgiram em momentos de um mundo não tão digital como hoje, quando as pessoas já nascem com um perfil na rede, mas ainda assim foi rápido. As análises dos efeitos disso pipocam nas redes, e nas telas. Para os radicais, é o início do fim da humanidade. Concluem que as máquinas vão pensar por nós, nos dominar, e nos usar como fonte de energia para suas próprias vidas, uma espécie de profecia realizada de “Matrix” (vejam o filme, o primeiro..). Para outros, uma evolução importante, mas não chega a ser sequer disruptivo e sim um aperfeiçoamento de práticas que de uma forma ou de outra já estão disponíveis, mas que foi muito facilitada, melhorada, e disponibilizada em massa, e que assim como tantas outras vai sim ocupar o espaço de alguns (talvez muitos...) empregos, e disponibilizar novos recursos. Quanto ao grupo dos que desdenham, os que sempre pensam nessas propostas como “ondas passageiras”, dessa vez ele é pequeno. Provavelmente não chegaram sequer a entender do que se trata. Não vai fazer diferença.


Minha visão, permitam-me, está ali pelo meio, e me recomenda a ter critério no que chamar de “inteligência”. Definições sobre o conceito de “inteligência” são muitas, mas de uma maneira geral passam pela capacidade de interpretar e dar soluções em propostas novas, eventualmente desconhecidas, e em diferentes ambientes e situações. Ou seja, não se trata de organizar dados já existentes, isso é importante, mas não é o suficiente.


É fato que as ferramentas apresentadas têm uma nova capacitação desenvolvida de larga aplicação, e que evoluiu para adaptar as respostas aos mais variados contextos, mas dependem muito da persistência de quem pergunta ir refinando até chegar a uma boa resposta. Elas conseguem se adequar ao contexto, respondem de maneira mais técnica ou mais divertida, por exemplo, desde que você especifique isso. Sem dúvida é útil, poupa muito tempo em tarefas que tem formatos e necessidades bem estruturadas, como formular contratos, instruções de uso, trabalhos escolares (alerta de risco !!) e, pelo que me tem sido reportado, um uso eficiente em prompts de programação. Não é pouca coisa e não é para subestimar, mas sim avaliar a eficácia e segurança nas suas entregas.


O principal gap de performance, ao que me parece, está na oferta de soluções novas, e nos componentes de criatividade, e subjetividade. Quanto mais repetitiva e formatada a demanda, mais fácil de ser assimilada pelos programas. Os Chatbots usam bancos de dados disponíveis e abertos, bilhões de consultas numa velocidade assustadoramente alta. Você poderia produzir os mesmos textos e as mesmas respostas fazendo as próprias pesquisas na web. Vai demorar bem mais, talvez com menor alcance e amplitude de detalhes, mas vai adicionar suas próprias visões, e é aí que começamos a falar das perdas.


UM MINDSET MEDIANO


Leio notícias de que submeteram o ChatGPT ao exame do ENEM de 2022 ( consulte em https://www.insper.edu.br/noticias/o-chatgpt-poderia-passar-no-enem/ ) .

Na média entre as matérias, ele conseguiu 614 pontos, o que lhe garantiria vaga em algumas boas escolas. A conclusão é que ele é um aluno bom, mas não está entre os melhores, muito menos o aluno perfeito. O resultado me surpreende, negativamente. Em se tratando de perguntas que certamente encontram respostas abertas na rede, deveria ser capaz de acertar tudo. Acho que vai acertar um dia, mas isso mostra um pouco como a coisa funciona, e do seu verdadeiro risco. É um acelerador de eficiência, e um inibidor de desenvolvimento cognitivo, mas isso também não é novo, já vivenciamos esse processo de “facilidades” que nos acomodam faz tempo. Explico.

Hoje, todos nós, já andamos com um “respondedor de perguntas” no bolso ou na bolsa. Se temos uma dúvida no trabalho, na escola, ou mesmo numa conversa entre amigos, não hesitamos: “dá um google aí pra lembrar o nome daquele ator do filme do 007 que tem um foguete da morte...”. Ninguém nem tenta parar pra pensar, puxar pela memória, exercitar o cérebro, nem nas coisas mais banais. Ninguém mais pede uma caneta pra dividir a conta do restaurante rabiscando no guardanapo do restaurante. Desaprendemos a fazer contas (me pergunto se alguns chegam sequer a aprender...), a lembrar do nome das ruas e dos caminhos, mas respondemos mais rápido, quase de imediato, e esquecemos logo também. Muita disponibilidade de informação e nenhuma necessidade de retenção, nem de aprofundamento. Se as respostas vêm fácil, não vale o esforço de preservar, nem de entender. Está resolvido. O cérebro funciona assim. Se alguém faz o trabalho por ele, ele não se exercita.


Facilitaram a sua vida também quando inventaram o carro, com seu câmbio automático e seu vidro elétrico, o elevador, o controle remoto, o micro-ondas, a máquina de lavar-roupas, as calculadoras digitais. Você ganhou mais tempo, mais precisão nas respostas e mais peso. Perdeu tonicidade muscular e agilidade de raciocínio, mas vai pagar academia e tomar remédios para compensar a saúde, e um dia vai fazer palavras cruzadas e joguinhos de charadas no celular para manter o cérebro ativo. Pode parecer uma comparação esdruxula, mas é exatamente isso. Mais velocidade com menos densidade, e profundidade. Estamos delegando tarefas e energia imaginando um ganho, mas nos contentando com respostas medianas, suficientes, e achando bom. Estamos acelerando o nosso processo de geração de pessoas com cada vez menos capacidade de exercitar seu potencial cognitivo e criatividade, esforço intelectual. Não é de hoje, repito, mas se acelera, e é o que gera essa sensação de que as máquinas sabem mais do que a gente, e vão dominar tudo. Isso sedimenta também um movimento silencioso e definitivo de afastar cada um do entendimento da origem das coisas, dos fundamentos, de como tudo funciona. Não queremos, e não vamos saber. Queremos respostas prontas, e rápidas, e ficar na superfície do conhecimento. Sei que isso é uma ideia mais difícil de entender e perceber como é fundamental para o desenvolvimento pessoal, mas prometo evoluir num próximo texto. Por enquanto, só perceba. Quanto mais fácil o acesso às respostas, mas difícil fica entender a origem do problema, e buscar soluções. Isso sim é grave, acredite.


PARA TODOS OS GOSTOS, E PARA O INSÍPIDO


Os recursos de IA não se limitam aos textos nem às fórmulas de programação. Vários aplicativos oferecem também músicas prontas e ilustrações com “qualidade de foto”, ou obras de arte. As redes sociais estão inundadas delas, dá para perceber, ou quase. Recentemente uma dessas fotos ganhou um concurso, importante. O vencedor se acusou, e quase foi processado, mas o objetivo era esse mesmo, mostrar que as coisas tendem a se confundir. Sem novidade nisso também. Recursos de edição fotográfica já são aplicados corriqueiramente por editores, processadores digitais e a discussão sobre o valor disso é farta, e inconclusiva.

É evidente que a aplicação positiva e produtiva de todos esses recursos é imensa, facilita muito uma determinada categoria de trabalhos, mas não a todos. A produção comercial de vídeos publicitários, por exemplo, já foi completamente afetada por máquinas e serviços digitais nas últimas décadas, e o impacto disso no meio foi imenso, mas não se deixou de produzir, nem de empregar. Novos profissionais se formaram nessa realidade, e isso gerou uma nova linguagem um novo padrão estético (para uma nova mídia...) assim como mudou o patamar de custos, e recursos de produção e direção em geral. Mais uma vez, é questão de aplicar os recursos certos na necessidade adequada, e assimilar a mudança. As diferenças existem, são claras, mas é como optar por um suco de laranja industrializado e empacotado numa caixinha, no lugar de um feito na hora. Não é necessariamente pior, nem melhor. Tudo depende do que você pode ou precisa consumir, e em que contexto. Em algumas soluções, ainda que você prefira um suco natural, o “de caixinha” vai te servir bem, e você vai agradecer por ele existir. O problema é crescer acreditando que suco de laranja é aquilo, sem a vontade e nem a necessidade de conhecer o que realmente é. Estabelecer um padrão medíocre como se essa fosse a realidade, e sequer entender o que é necessário para que esse produto chegue às suas mãos em seu potencial original.

O fato é que toda uma geração vai crescer acreditando que o melhor suco de laranja é o de caixinha, a melhor música é a feita por computador, e o melhor que você pode entender de um tema é um texto produzido por um aplicativo. Esse é o retrocesso, esse é o preço do benefício da velocidade e disponibilidade imediata, um recrudescimento da capacidade humana de viver, criar, e usufruir das coisas realmente boas na sua totalidade, e tomar como padrão uma oferta de soluções pasteurizadas e massificadas. Já estamos vivendo isso, pode acreditar, basta olhar a sua volta.


TEMPOS MODERNOS, E ETERNOS


Alguns vão argumentar que essa experiência dos chats de IA é diferente, o risco é maior, pois inclui um processo decisório, conclui por si só e vai substituir o ser humano em todas as frentes. Não, não vai, ou pelo menos por enquanto não. Várias outras ferramentas já fazem isso, em outras plataformas, algumas bem tradicionais. Escolhem, selecionam, separam, protegem, corrigem, calculam, produzem, reparam, você é que já se acostumou com elas, e nem percebe. Essa é mais uma. Vai ampliar recursos, possibilidades, cometer acertos e erros e sim, substituir alguns postos de trabalho, mas em contrapartida ampliar os recursos para mais evolução, com mais eficiência, é só questão de aprender a usar na devida medida, e não se limitar ao que oferecem. Talvez a velocidade em que as mudanças estão se dando nos assuste um pouco, mas acostume-se. Vai mudar mais, e mais rápido.

Essa é a essência do processo de inovação, tão celebrado entre profissionais de todas as áreas: compreender a evolução dos recursos, das necessidades, dos desejos, e fazer bom uso disso. Esse é o desafio. O futuro nos desafia, e um desafio pode provocar emoções variadas; medo, curiosidade, excitação, esperança, entusiasmo, apreensão. Coisas que só um ser humano pode sentir, e esse é o seu diferencial. Faça bom uso dele. Doutrine sua mente, seu corpo e suas emoções, e faça suas escolhas. Essa é a vantagem que sempre teremos.


Boa semana pra vocês gente....


Ricardo Daumas

solu9.com halimites.com.br


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